Aluguel consignado avança na Câmara: o mercado locatício ganha em múltiplas frentes

Aluguel consignado avança na Câmara

Após quatorze anos de tramitação, o projeto de lei que cria o aluguel consignado foi aprovado na terça-feira (9) pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados. O PL 462/2011, de autoria dos deputados Júlio Lopes e Paulo Abi-Ackel, permite que o valor da locação e encargos sejam descontados diretamente da folha de pagamento do trabalhador — mecanismo semelhante ao que já ocorre com o crédito consignado. O texto ainda precisa passar pelo Senado para virar lei, mas a aprovação marca um momento decisivo em um mercado que historicamente conviveu com garantias frágeis e inadimplência oscilante. O que se desenha é um raro caso de medida regulatória que beneficia simultaneamente inquilinos, proprietários e agentes financeiros.

Como funciona na prática

Pelo texto aprovado, servidores públicos, trabalhadores regidos pela CLT, aposentados e pensionistas poderão autorizar a consignação de até 30% do salário ou benefício líquido para pagamento de aluguel e encargos, adicionalmente à margem do consignado tradicional prevista na Lei 10.820/2003. Esse percentual adicional está sujeito a regulamentação de compatibilização das margens, de modo a evitar comprometimento excessivo da renda. O desconto só cessa mediante apresentação da rescisão do contrato de locação assinada pelo locador, ou pela substituição por outra garantia, com aviso prévio de 30 dias. A subemenda aprovada prevê ainda multa administrativa de 30% ao empregador que descontar valores e não repassá-los ao proprietário — mecanismo de proteção contra desvios entre contracheque e destino final, extensão da Lei 15.179/2025 que trata do consignado digital. A eficiência do modelo já é conhecida: o crédito consignado opera com inadimplência inferior a 3% (Banco Central, 2024), enquanto a inadimplência de aluguel apresenta grande variação regional e metodológica: São Paulo Capital registrou 4,04% em janeiro/2025 (CRECISP, contratos administrados por imobiliárias), a Região Norte atingiu 6,77% no mesmo período (Superlógica, atraso >60 dias), e estudos da ABADI/Secovi Rio apontam percentuais de atraso em bairros do Rio de Janeiro chegando a 11,4% na Barra da Tijuca (2022, metodologia inclui atrasos de curto prazo). A média nacional fica entre 3,3% e 3,8% quando se considera atraso superior a 60 dias, mas recortes regionais, por faixa de aluguel e por tipo de medição revelam disparidades significativas.

O primeiro ganha: inquilinos acessam mercado formal

A Lei do Inquilinato (8.245/1991) lista um rol fechado de garantias locatícias — fiador, caução, seguro-fiança — que se tornaram barreiras de entrada para muitos. O fiador pessoa física, modalidade ainda prevalente, enfrenta limitações práticas: embora o STF tenha confirmado a penhora do bem de família do fiador (Tema 1127, 2022) como constitucional, a execução segue lenta na prática e o fiador pessoa física perde espaço para garantias mais padronizadas. O seguro-fiança, por sua vez, pode exigir prêmios que variam de 1 a 3 aluguéis anuais, chegando a valores mais altos em casos com coberturas amplas. Para quem não consegue formalizar contrato por falta de garantia robusta, o consignado abre porta que antes estava fechada. O inquilino economiza na entrada, evita o constrangimento social de pedir a familiares ou amigos que coloquem patrimônio em risco, e ganha acesso ao mercado formal sem barreiras artificiais.

O segundo ganha: proprietários ganham previsibilidade

O proprietário, por sua vez, ganha previsibilidade próxima à de um título de crédito. Se a inadimplência do crédito consignado é inferior a 3%, a expectativa é que o aluguel consignado opere em patamar semelhante — o que representa redução significativa em relação às taxas que variam de 3,3% a 11,4% conforme região, metodologia e perfil do imóvel. Menos sinistro significa menos estresse, menos ação judicial, menos tempo de imóvel parado. Para quem comprou imóvel para renda, a garantia consignada transforma o fluxo de caixa em algo quase tão confiável quanto a aplicação financeira conservadora.

O terceiro ganha: criação de ecossistema financeiro

Mas o potencial vai além da redução de inadimplência. Diego Gama, advogado e diretor nacional de fiscalização do COFECI, observa que “o mar de possibilidades é muito grande porque você vai ter mais dados do cliente. Fintechs podem ser “consignadoras”, ter dados mais qualificados de análise de crédito, e oferecer serviços correlatos — microcrédito, financiamento de reformas, até home equity indireto para o proprietário”. A lógica é elegante: o proprietário passa a ter recebível previsível e documentado; fintechs e bancos podem oferecer crédito lastreado nesse fluxo futuro, ou até antecipar aluguéis com taxas competitivas. Seguradoras, mesmo com margem menor no seguro-fiança tradicional, ganham acesso a dados que permitem vender produtos complementares — seguros do bem (incêndio, danos estruturais), seguros de proteção de renda contra desemprego involuntário — com mais assertividade e menor risco de sinistro. Para operações Multifamily, como a Luggo ou similares, o consignado vira plataforma de ancoragem para múltiplos produtos financeiros em escala. Não é apenas substituição de garantia; é criação de ecossistema que antes não existia.

Pontos de atenção para aperfeiçoamento no Senado

Há, contudo, um ponto que merece atenção na tramitação pelo Senado. Sem vínculo empregatício, o aluguel não pode ser descontado — o que pode gerar retomada do imóvel, já que o contrato não pode ficar sem garantia. Traduzando: o trabalhador que perde o emprego durante a vigência do contrato perde simultaneamente a garantia consignada. Até onde consegui rastrear nas peças oficiais publicadas pela Câmara, não há previsão de período de carência — digamos, 90 ou 120 dias — para que o inquilino busque substituir a garantia sem enfrentar retomada imediata do imóvel. Produtos complementares como seguro de proteção de renda podem funcionar como acessórios ao contrato principal, oferecendo cobertura temporária em caso de desemprego involuntário. É o aperfeiçoamento desejável para tornar o modelo mais resiliente em cenários recessivos.

Flexibilidade geracional e novos perfis de inquilino

Tenho documentado em textos anteriores que jovens brasileiros valorizam crescentemente a flexibilidade na moradia — preferência por alugar em vez de comprar, mudanças mais frequentes por oportunidades profissionais, recusa em comprometer décadas com financiamento imobiliário. O consignado facilita o acesso desse público ao aluguel formal justamente por eliminar barreiras de entrada — sem necessidade de acumular meses de caução ou encontrar fiador disposto. Sim, há compromisso de até 30% da renda líquida (adicional à margem do consignado tradicional, sujeito a regulamentação) por contratos que geralmente duram 30 meses, mas para quem estava fora do mercado formal por falta de garantia, é trade-off favorável. A mobilidade permanece possível com aviso de 30 dias para rescisão; não é impedimento, é processo.

Tramitação e perspectivas

A tramitação segue por apreciação conclusiva nas comissões. Após a aprovação na CCJC em 9 de dezembro — com publicação no Diário da Câmara em 11 de dezembro —, abre-se prazo para eventual recurso ao Plenário. Sem recurso, o projeto segue ao Senado. Entidades do setor, como a ABMI (Associação Brasileira do Mercado Imobiliário), comemoram a medida como avanço para reduzir a inadimplência e ampliar acesso ao mercado formal. O otimismo é justificado: locadores ganham previsibilidade, inquilinos ganham acesso, imobiliárias podem oferecer contratos a perfis antes excluídos, e fintechs enxergam novo território de produtos financeiros com baixa sinistralidade.O que se desenha é raro no debate regulatório brasileiro: medida que não cria vencedores e perdedores, mas expande o bolo para todos. Folha de pagamento como infraestrutura de garantia, ecossistema financeiro como derivação natural, acesso ampliado ao mercado formal como consequência — três dimensões que o projeto articula de forma consistente. Resta acompanhar se o Senado aperfeiçoará o texto com mecanismos de proteção complementares e se a regulamentação de compatibilização das margens consignáveis equilibrará acesso e responsabilidade fiscal. A direção está correta. É ganha-ganha em múltiplas frentes.

Últimas postagens